Entre Memória e Silenciamento: A Exclusão Sistêmica no Brasil da Repressão Militar (2025)

 By Cathy Scarlet



Seja pelas construções ideológicas que nos moldam há décadas, seja pela apatia diante da desvalorização dos eventos que marcaram — e ainda marcam — o nosso cenário nacional, o fato é que os percursos de luta têm perdido força. Isso acontece mesmo diante da importância crucial dessas mobilizações por direitos sociais, que vêm sendo sistematicamente enfraquecidos por interesses elitistas e pela lógica excludente do sistema capitalista. A resistência contra o silenciamento persiste, porém, muitas reivindicações ainda se perdem no vazio de prioridades moldadas por práticas antiéticas e pela corrupção que domina o cenário político do país. 

 Ao longo de boa parte de nossa jornada histórica vemos a figura dos militares assumindo o controle político e governamental do país, seguida das elites burguesas e ruralistas . Conjuntamente, determinaram o andamento social e econômico, privilegiando os já privilegiados por um sistema que gira em torno dos grandes capitais de mercado, desprezando aqueles que apenas fazem parte dele, mas o sustentam, direta ou indiretamente. Além disso, comprometeram-se em aperfeiçoar o Brasil pelos moldes de países estrangeiros desenvolvidos como França, Inglaterra e Estados Unidos (SEVCENKO, 2010). 

No período republicano, não houve concessões maiores aos mais pobres ou aos grupos antes menosprezados, como os negros, povos originários, mulheres, homossexuais e deficientes. Nem na Primeira República nem posteriormente. Deixaram claro que o primordial seria manter os acordos internacionais (Inglaterra e EUA, sobretudo)  e defender os territórios dos latifundiários e a economia que girava em torno do café, do tabaco e dos burgueses. Com isso, demarcações de terras dos quilombolas e dos povos originários foram ignoradas e eles foram empurrados cada vez mais para fora de seus lares e perdendo espaço nas políticas sociais. 

Esses processos de exclusão, iniciados ainda no período republicano, mantêm se vivos nas estruturas institucionais atuais. Um exemplo disso pode ser observado na política educacional do Pará, que, mesmo no século XXI, continua a negligenciar os direitos básicos de comunidades historicamente marginalizadas. No Pará1, por exemplo, a política educacional, em pleno século XXI, tem tirado o direito a aulas presenciais para implementarem aulas remotas em aldeias indígenas que mal têm acesso à internet. Isso foi um dos fatores que resultou no pedido de exoneração do secretário da Educação, Rossieli, antigo secretário do Estado de São Paulo, resultado das políticas excludentes que ainda existem e são fomentadas estruturalmente. 

Ao ressaltar o fator educacional, não estou me afastando do tema. Ao contrário, pretendo mostrar esse contínuo ataque ao espaço de fortalecimento de pensamentos críticos e discussões abrangentes importantíssimas, que são constantemente emperradas pelo sistemático engessamento dos currículos que, vejam só, foram parar nas mãos de governantes militares, como Tarcísio de Freitas, aqui em São Paulo. Sua atuação é fruto do que se viveu com mais brutalidade no golpe de 64, do qual ainda sentimos os efeitos. Estes aparecem na visão deturpada que os mais afetados têm do que houve nesse período e além, estendendo-se para a percepção dos mais jovens dos eventos expostos até na mídia internacional. 

Quando se fala a respeito da ditadura militar, muitos corrigem a expressão por outras menos “dolorosas”, como intervenção militar ou período cívico-militar. Só que as tão-conhecidas intervenções militares não se resumiram ao Golpe de 64. Essas aconteceram desde muito antes. Consequentemente, a base popular e trabalhadora dessa pirâmide injusta e cruel passa a ser manobrada ou escorraçada, de acordo com as particularidades contextuais. Alguns exemplos são algumas das revoltas que estudamos, dentre as quais cito a do Contestado (Santa Catarina e Paraná) e de Canudos (Bahia). Em ambas houve o massacre dos mais pobres e humildes (dentre os quais faziam parte indígenas, pretos e pardos), pelas mãos de quem deveria zelar pela segurança dos cidadãos: militares e polícia, que assumem esse poder repressor e tirano para com as classes menos privilegiadas. A crueldade foi tamanha que expuseram seus corpos dilacerados para servir de exemplo de má conduta a quem resolvesse se rebelar contra as injustiças. Por isso, faz-se necessário o revisionismo atual e a incandescência da memória coletiva para evitar falas e pensamentos que se estendem para a juventude: não houve Ditadura e vivemos no País das Maravilhas e das melhores condições sociais e políticas. 

Mesmo na contemporaneidade, vemos essas mesmas forças voltando a fechar o Congresso e forçando diretrizes, leis, decretos para silenciar e barrar quem discordasse da abordagem assumida pelos militares no comando. Como resultado da interferência da CIA (EUA), o período ditatorial se estendeu para outros países da América Latina. Como exemplo temos a República Dominicana, bem exposta na obra A Festa do Bode (2000), de Mario Vargas Llosa. Assim como neste, o Brasil enfrentou uma repressão gigantesca aos militantes que desejavam uma nação mais democrática. Alguns foram exilados, mas muitos acabaram sumindo e nunca mais as famílias tiveram notícias de seus paradeiros nem puderam vivenciar o luto ou prestar as últimas homenagens a eles. Muitos sofreram torturas que nos são relatadas pelos sobreviventes com tamanha dor que nos leva a refletir nas razões para que algumas vertentes políticas e elitistas desejem eliminar esse momento da história, taxando como exagero chamá-lo de Ditadura militar. As vítimas? Acabam taxadas de transgressoras da lei, terroristas... E os torturadores? São aclamados como heróis até hoje, como ouvimos na fala de alguns deputados e senadores durante o impeachment de Dilma Rousseff, em 2016. 

Embora muitos acontecimentos históricos tenham sido utilizados como fundamentos para manter privilégios, aprofundar a polarização política e atacar iniciativas de transformação social, econômica e internacional, também houve resistências importantes. Lideranças políticas como Carlos Prestes, João Cândido (NASCIMENTO, 2010), Dilma Rousseff e Lula, além de tantos militantes anônimos e cidadãos da classe popular, lutaram — e ainda lutam — por direitos e justiça social. Muitos pagaram com o silêncio, o exílio ou até a morte. João Cândido, por exemplo, só foi reconhecido postumamente como herói pela sua atuação na Revolta da Chibata, em 1910, símbolo da repressão contra vozes dissidentes que marcaram nossa história. 

Hoje, a democracia segue em risco, ameaçada pela herança autoritária deixada pelos militares — herança essa que segue viva nas estruturas de poder, nas práticas repressivas e na negação de direitos. O acesso ao conhecimento histórico e a uma formação crítica é o que possibilita o surgimento de uma resistência argumentativa legítima, capaz de confrontar as narrativas manipuladas pelas elites e por um sistema capitalista que perpetua desigualdades. Reescrever a história a partir de uma ótica parcial e autoritária é apagar o outro lado dos acontecimentos — aquele que incomoda os detentores do poder. Essa prática de silenciamento gera desinformação, aliena gerações e permite que versões convenientes substituam os fatos. A manipulação da memória coletiva, como legado do militarismo, favorece apenas os que continuam usufruindo do luxo, da estabilidade e da segurança às custas da invisibilização de muitos. Manter a memória viva, portanto, é um ato de resistência — e talvez o mais urgente entre todos.






XOXO





BIBLIOGRAFIA 

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NASCIMENTO, Álvaro P. A revolta da chibata e seu centenário. Revista do Centro Sérgio Buarque de Holanda da Fundação Perseu Abramo. Dossiê “Rebeliões: Motim e Negociação.” n. 5, Ano 4, junho 2010. 

TELES, Janaína. Os familiares de mortos e desaparecidos políticos e a luta por “verdade” e “justiça” no Brasil. In: SAFATLE, Vladimir; TELES, Edson. (org.). O que resta da ditadura. A exceção brasileira. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2010, v. 1. p. 253-298. 

NAPOLITANO, Marcos. A história política do golpe de 1964 e do regime militar: balanços e perspectivas. Tempo & Argumento, 2024. Disponível em: https://periodicos.udesc.br/index.php/tempo/article/view/2175180 316422024e0301/17350. Acesso em: 05. jan. 2025 

ROCHA, Antonio Sergio. Redemocratização à brasileira? Transição política pelo alto, processo constituinte pela base, 1974-1988. Estudios del ISHiR, 20, 2018, pp. 107-126. 

SOUZA, Jessé. A radiografia do golpe: entenda como e por que você foi enganado. Rio de Janeiro: Leya, 2016. p. 87-138. 

NETO, Lira. Getúlio: da volta pela consagração popular ao suicídio (1945-1954). São Paulo, Companhia das Letras, 2014. v. 3. “Capítulo 17: As forças armadas exigem a renúncia do presidente. “Só morto sairei do Catete”, responde Getúlio (1954)” e “Capítulo 18: ‘Se algum sangue for derramado, será de um homem cansado e enojado de tudo isso’ (24 de agosto de 1954). 

PRESTES, Anita Leocádia. A Coluna Prestes. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 09-44. 

Rossieli Soares deixa a Secretaria de Educação do Pará. G1, 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/pa/para/noticia/2025/06/14/rossieli-soares-deixa-a-secretaria-deeducacao-do-para-governo-nao-anunciou-substituto.ghtml. Acesso em: 30/06/2025.


REFERÊNCIA DA IMAGEM

https://portaldoro.com.br/tag/silenciamento/


Comentários

  1. Esta muito bem explicado e iluminando,com clareza este momdnto tao Crucial do Brasil .Pena que muitos tentam apagar tudo ,para que as novas Gerações de Jovens nao conheçam este passado? Temos que conhecer o Passado para vivermos um Futuro Promissor.

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