Entre o autoritarismo e a violência - O legado deixado pela postura vira-lata (2025)
By Cathy Scarlet
Quando
analisamos a situação do nosso país, surgem questionamentos a respeito das
motivações que levam tantas pessoas a apoiar medidas, discursos e
posicionamentos contrários à isonomia e à soberania brasileiras. Num contexto
sem precedentes, recorremos a críticos atemporais, cujas ideias ainda
determinam o modo de pensar de muitos em nossa contemporaneidade.
No
início da Era Vargas, as ideias de Gilberto Freyre (1933) serviram para lapidar
a percepção sobre a identidade do povo brasileiro e conferir certa unidade
popular ao governo. Com a expressão “homem cordial”, consolidou uma visão
positiva da miscigenação, antes considerada um aspecto de degradação. Essa
alcunha explicava a plasticidade social dos brasileiros, elogiando sua
capacidade de adaptação às diversas situações e adversidades. Apesar de ter
contribuído para o declínio do racismo explícito e violento, ainda abria espaço
para práticas veladas de discriminação e preconceito.
No
entanto, medidas populistas não estavam no horizonte da elite brasileira. Para
rebater a perspectiva de Freyre e iniciar a desmobilização do governo Vargas,
adotou-se a visão de Sérgio Buarque de Holanda (1936), que também utilizava o
conceito de “homem cordial”, mas em sentido negativo. Para ele, por estar
profundamente ligado ao seio familiar e às relações de proximidade, esse
indivíduo se tornava mais propenso à corrupção, já que suas decisões eram
guiadas pela emoção, não pela razão. Anos mais tarde, Faoro (1958) aprofundou
essa interpretação e concluiu que, se o indivíduo era manipulado por sua rede
de afinidades e familiares, o mesmo ocorreria com o Estado por ele eleito, no
qual não havia limites claros entre público e privado, intensificando a corrupção
em um patrimonialismo consolidado. Como solução, apenas o mercado e a economia
liberal poderiam reverter esse cenário — ou seja, favorecendo a elite branca e
os latifundiários do país. Na mesma linha, DaMatta (1979), utilizado para
justificar o período da Ditadura, confirmou hipóteses anteriores e atribuiu às
camadas mais humildes a responsabilidade pelas violências e corrupções, com o
famoso conceito de “jeitinho brasileiro”. Para ele, momentos de festividade,
como o Carnaval, funcionariam como ilusões coletivas de igualdade, e a
religiosidade seria marcada por rituais destituídos da seriedade e veneração
devidas. Assim, reforçava-se a ideia de que o Brasil vivia em um eterno
conflito entre hierarquia e igualdade, sem que esta última se consolidasse devido
à suposta irracionalidade das classes populares, imersas em redes de apoio e
favorecimento.
Com
o passar dos anos e o apoio desses (e de outros) aportes teórico-críticos, a
elite brasileira, aliada a uma imprensa parcial, ascendeu e manteve-se no poder
por meio de tais discursos. A isso se somaram os interesses de outras nações
(especialmente os EUA, fortalecidos após a Segunda Guerra Mundial), que
passaram a enxergar o Brasil não como nação, mas como objeto de exploração,
repetindo a lógica colonial. Essa mentalidade, no entanto, não prosperaria se
os brasileiros se reconhecessem como parte de um todo coeso. Mas a consolidação
de uma classe média, apartada dos mais humildes — a quem passou a olhar de cima
— estabeleceu um precedente perverso: a mobilização para impedir a ascensão dos
mais pobres a condições dignas e humanas de existência. Nesse processo, a
classe média incorporou com avidez pensamentos elitistas, considerando-se uma
“sub-elite”, próxima de compartilhar ideais e privilégios da elite de fato.
Como consequência, passou a se distanciar dos pobres, agora vistos como
culpados pela pobreza, pelo atraso e pela criminalidade. Retomando a paráfrase
de Milton Santos: existem apenas ricos e pobres. A noção de classes
intermediárias serve apenas para fragmentar ainda mais a população, impedindo
uma reação coletiva diante das injustiças e favorecendo impunidades, como a
buscada em relação ao julgamento do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro,
condenado por planejar um golpe contra o Estado democrático de direito.
Milhares saíram em sua defesa, acastelando uma concepção legislativa voltada a
interesses pessoais. Muitos ali presentes mal sabiam expor, de forma
respeitosa, os motivos de sua revolta, como revelaram vídeos de repórteres
amadores no TikTok, que foram xingados e ameaçados ao tentarem registrar uma manifestação
nada pacífica.
Embora
as mobilizações sejam parte de uma sociedade democrática, temos assistido,
perplexos, a protestos que clamam por intervenção militar e até pela
interferência do governo americano em decisões nacionais. Muitos brasileiros
parecem acreditar ingenuamente — como aqueles do período do açúcar, diante das
invasões holandesas no século XVII — que os EUA poderiam transformar o Brasil
em uma extensão bem-sucedida de seu aparato estatal. Esquecem-se de que somos
vistos apenas como o “terreno baldio” das nações desenvolvidas. Exacerbada
diante da justiça que se impõe, a elite brasileira, aliada a políticos de
direita e extrema-direita, bem como a setores religiosos (especialmente
evangélicos na figura de pastores como Silas Malafaia), incita o povo contra o
próprio povo e contra o país. Valendo-se das Big Techs e da imprensa, propaga
desinformação e, de certo modo, cega a população sobre o que realmente
acontece. Enquanto isso, aqueles mesmos países que tanto são invocados para
intervir têm ajudado a dizimar populações negras e pardas ao redor do mundo sem
punição — como nos casos de países africanos e da Palestina. No campo
ambiental, a situação é igualmente grave: o agronegócio interno e potências
estrangeiras seguem degradando ecossistemas, sem qualquer preocupação com o
futuro ecológico do planeta. Os EUA, por exemplo, já se retiraram de
compromissos ambientais e não demonstram preocupação com o aumento das emissões
de CO₂, tampouco com a destruição de florestas e áreas verdes em seu próprio
território — quanto mais no Brasil. Esse descompromisso encontra eco em
discursos e práticas nacionais, intensificando nossos impasses.
O
“complexo de vira-lata”, que limita nossa voz e nossos direitos, parece
sobrepor-se a um verdadeiro raciocínio patriótico e empático. Isso revela que
não são as classes populares as mais corruptas ou “emocionais”, mas sim a elite
e a classe média, que abraçam o pensamento de direita voltado apenas ao
enriquecimento dos detentores de capital. Vale ressaltar que a classe média não
pertence a esse grupo, mas acredita fazer parte dele, alimentando teorias
absurdas que fomentam insegurança geral — como o movimento antivacina, ainda
ativo e já responsável por impactos graves na saúde infantil. Outro dado impossível
de ignorar é o aumento de casos de violência, principalmente contra as mulheres
e os negros. Isso nos leva a constar que pensamentos retrógrados como o
machismo e racismo estrutural ainda permanecem e vitimizam muitas pessoas todos
os anos. Acreditar na inferioridade de um grupo é mais uma consequência de
linhas de pensamento que servem apenas para relevar as ações de quem se
beneficia com o capitalismo e com a impunidade.
Em
suma, a crença na inferioridade de determinados grupos revela-se como mais uma
engrenagem de um sistema que busca apenas manter privilégios, encobrindo os
reais beneficiários da exploração capitalista e do patrimonialismo. Ao longo da
história, narrativas foram moldadas para justificar a desigualdade e
naturalizar a violência simbólica e material contra a “ralé do povo”. Romper
com esse ciclo exige identificar os mecanismos de dominação (ideológicos,
políticos ou econômicos), e resgatar um projeto coletivo de nação que valorize
a dignidade humana acima dos interesses privados. Enquanto não reconhecermos
que o Brasil só se fortalece quando seus cidadãos se reconhecem como iguais em
direitos e responsabilidades, permaneceremos reféns de um “complexo de
vira-lata” que serve apenas àqueles que lucram com a desunião. O desafio, portanto,
é transformar a crítica em ação, superando o conformismo e a manipulação para
afirmar um país mais justo, soberano e verdadeiramente democrático.
XOXO
BIBLIOGRAFIA
SOUZA,
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REFERÊNCIA DA IMAGEM
https://canadaagora.com/cultura/complexo-de-vira.html



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