Sobre os ossos dos mortos - Olga Tokarczuk (2021)
By Cathy Scarlet
Autora: Olga Tokarczuk
Em alguns momentos bate aquela
tentação de experimentar algo novo, uma comida diferente, um lugar inusitado.
No meu caso, quis escolher mais um livro aleatoriamente para comprar e me deparei
com uma obra que me surpreendeu não apenas pela narrativa, mas pela abordagem
assumida.
Primeiramente, vou falar um pouco
sobre a autora: Olga Tokarczuk. Filha de professores, nasceu na Polônia, em
1962. Porém, engana-se quem pensa que se
trata apenas de uma escritora (embora, por si só, já seja uma profissão que
exija da mente e do espírito um engajamento e uma inspiração tremendos): ela
também é ativista, roteirista e intelectual. Até meados dos anos 90 atuou na
área de psicoterapia, o que torna compreensível a articulação desta com seu
afazer literário. Recebeu, em 2018, o prêmio Nobel de Literatura. Uma das
características de sua escrita é o tom mítico a partir do qual discursa a
respeito do aspecto social e a nossa perspectiva da realidade e da natureza.
Discutirei aqui a respeito de seu romance (com uma pegada existencial), Sobre os ossos dos mortos,
lançado em 2009. A história se passa no cenário rural de Kłodzko Valley, região
cobrindo o sudoeste da Polônia e pegando uma parte da República Tcheca. Os
acontecimentos giram em torno da Sra. Janina Dusheiko (que, a propósito,
detesta ser chamada por seu nome de batismo) e de sua relação com os animais. Trata-se
de uma senhora solitária (acabara de perder suas Meninas, suas cachorras) que
ensina língua inglesa na cidade e atua como zeladora/cuidadora de algumas
casas, cujos donos raramente aparecem. Vale mencionar seu fascínio por
astrologia, não sendo apenas uma leiga, mas alguém que relaciona aspectos da
vida com os astros e os mapas astrais pelos quais é fissurada. Seus amigos são
Esquisito (seu vizinho), Dísio (com o qual divide sua paixão pela poesia de
William Blake, sendo o título do livro baseado em um de seus poemas), Boros (um
entomologista que se hospeda por um tempo em sua casa) e Boas Novas
(funcionária de um brechó). Seus apelidos e de outros personagens são criados
de acordo com algo representativo, sejam atitudes ou características
fisionômicas.
Tudo começa com a morte de Pé
Grande, morador e caçador da região. Avisada por Esquisito de que algo estava
errado, pois a cachorra daquele latia sem parar, Dusheiko o acompanha e
encontram o homem morto por conta de um osso de corça com o qual se engasgara.
Logo, começou a especular que havia se tratado da vingança do companheiro do
animal morto, cuja vingança culminara na morte do caçador. Lá, acaba
encontrando uma fotografia que parece abalá-la e a guarda.
Aos poucos, outras mortes
acontecem e a senhora continua apontando que os animais foram os responsáveis
por tais infortúnios, como forma de retaliação pela ação cruel dos
assassinados: Pé Grande, o Comandante, Víscero, o Presidente e Padre Farfalhar.
Consequentemente, já que ela continua apostando nessa teoria e ainda a espalha
para outras pessoas da cidade, seguida de cartas para a polícia e da relação de
proximidade com as circunstâncias dos crimes, passa a ser considerada
suspeita.
Por sorte, Dusheiko tem o apoio
dos amigos e acaba sendo solta antes do prazo legal estabelecido. No entanto,
sua raiva pelos crimes cometidos contra os animais e o desprezo do padre em
compreender a relação da natureza com a própria vida dos seres humanos, começam
a fazer o receio das pessoas aumentar com relação a sua sanidade.
Em dado momento, Dísio faz uma
descoberta que o deixa estarrecido. E junto dos demais amigos de Dusheiko, se
deparam com uma revelação que os deixa ainda mais perplexos.
É uma obra que traz reflexões
poderosas sobre a relação do homem com a natureza e daquele com o próprio mundo
que o cerca. Acima de tudo, nos faz questionar sobre o limite que há entre
justiça e vingança, principalmente por conta da narrativa pouco confiável em
primeira pessoa.
Abaixo, elenco algumas das reflexões que considero fundamentais para a análise desta obra fascinante:
Ø “É preciso falar às pessoas o que elas devem pensar. Não tenho outra saída. Do contrário, uma outra pessoa fará isso”. p. 144.
O primeiro trecho nos remete à
ambiguidade do domínio da habilidade de escrita. Acima de tudo, interligada com
letramento, constitui um elemento poderoso de persuasão e de mobilização de
ação em conjunto com ideologias e fortes imagens que convencem o outro a ser,
agir e existir de determinada forma no mundo.
Trata-se de uma ferramenta que
pode nos levar a atitudes construtivas, porém tem sido usada para o contrário
desde seus primórdios. Um exemplo atual são as fakes news, que mobilizam
muitos a pensarem e adotarem modos de vida totalmente contrários a estudos
científicos e sociais apenas por falas mal construídas ou ideias espalhadas de
modo irresponsável pelos meios digitais.
Ter poder e saber manipular as
palavras significa ter controle ou poder libertar as massas pela informação e/ou
pela emoção.
Tudo ao nosso redor tem um propósito e nada acontece sem que
haja uma correlação com ações e suas consequências a curto ou longo prazos.
Mesmo as menores ocorrências acabam nos fazendo considerar suas motivações e
propósitos. No fim, nos deparamos com o fato de que coincidências são muito
mais complexas e interligáveis do que pensamos. Isso se comprova na própria
obra.
Somos uma consequência da criação, mas não somos imortais. Tal
constatação pode parecer óbvia, mas nem sempre agimos de modo a considerar tal
fato. Muito pelo contrário: somos irracionais ao ponto de vivermos como se não
houvesse amanhã, imprudentemente. No entanto, à nossa porta batem a idade e as
intempéries advindas de nossas escolhas na vida.
Embora nos deparemos com a finitude da existência e com o
pessimismo dos dias e dos acontecimentos com os quais nos deparamos, vale
sempre lembrar de se procurar o lado positivo da vida, das pessoas e dos
lugares. Onde há guerra, também já foi um lugar bom de se viver. E que pode
voltar a sê-lo. Mesmo aquele vizinho-peste, também é uma profundidade complexa
de emoções e sonhos não revelados. O pior momento que vivemos não dura para
sempre. Tudo e todos são aprendizados enriquecedores.
O pior lado das pessoas não tem a ver com seus defeitos, dos
quais todos somos constituídos. Está, na verdade, relacionado com a nulidade do
outro. A cada dia, vemos a pouca consideração e empatia em falas,
comportamentos e posicionamentos que ignoram fatos, realidade e lugar social ao
qual se pertence. Abraça-se um ideal identitário inexistente para jorrar preconceito,
ódio e crueldade perante tudo e todos que não cedem ao que se anseia, a
ideologias que pouco se compreendem e ao apadrinhamento, adoração de líderes
religiosos ou políticos irresponsáveis, beirando a insanidade (coletiva, em
alguns casos). Vejo nas redes sociais uma enxurrada de falas maldosas desejam
morte, destruição e aniquilação do outro, de povos, raças... Também marcam a
ignorância e falta de compreensão da realidade com a propagação de informações
falsas e inverídicas das quais “ouviram falar”, mas nunca leram em nenhum livro
didático.
Vários pensamentos aparecem ao longo da obra relacionados à
morte. Este, em específico, nos faz considerar a importância da existência do
organismo mais ordinário, pois constitui um todo crucial da existência dos
seres vivos. Cada ser tem sua importância no grande ciclo vital ao qual estamos
todos expostos e ao qual pertencemos. Consequentemente, quando vemos registros
e mais registros de espécies em extinção podemos nos deparar mais concretamente
na importância delas para ecossistemas, cadeias alimentares e até pela própria
categoria animal a qual pertencera. Voltando para nós, cada um tem importância
no universo, mesmo que por um breve período existencial. Leva-nos a compreender
que a morte não pode ser banalizada ou colocada de lado por quaisquer razões.
Cada perda reflete a dor que outros carregarão com mais intensidade, com a
ausência que será sentida por muito tempo por quem amava aquele ser que
pulsava, pensava, tinha sonhos e ansiava por coisas materiais e abstratas das
quais nunca teremos acesso, mas que podemos imaginar. São as complexidades
também existentes em cada um de nós e naqueles que nos rodeiam. Somos
importantes, mesmo que as areias do tempo cubram traços da nossa passagem por
estas terras.
Conviver com as pessoas é uma tarefa árdua e cansativa, na
maior parte do tempo. Não é por menos: opiniões divergem vez ou outra, as
picuinhas começam a surgir, sentimentos incontroláveis (será?) afloram e fazem
antever as entrâncias mais profundas da alma humana... Ou simplesmente porque
socializar também se torna cansativo. A solidão torna-se uma premissa
necessária à sanidade mental dos indivíduos que têm de conviver com as pessoas
diariamente. É uma necessidade do corpo e da mente esse apartar-se do convívio
para torná-lo mais saudável na retomada.
Quando vejo casais em pé de guerra, desgostosos da presença
um do outro, compreendo ainda mais essa necessidade de espaço, algo mais
difícil quando se vive sob o mesmo tempo. Ainda assim, deveria começar a fazer
parte do cotidiano das famílias, principalmente. Desafoga, alivia o estresse da
convivência constante e das atribulações individuais que acabam corroendo das
relações com os azedumes, o descontar constante no outro das raivas do mundo.
Espaço e solidão não são aspectos irrisórios ou desnecessários quando falamos
de manter as relações mais leves e menos conflituosas. Evita mágoas estúpidas
criadas por sentimentos que são puramente reflexo do desgaste ao qual nos
mantemos sem pausa reflexiva.
A idade torna-se um peso quando pensamos naquilo que ficou
para trás e nos mantemos fixos nesse passado enterrado.
Quando olhava para meu avô, com seus mais de noventa anos,
ficava me perguntando como se sentia ao lembrar que muitos de seus amigos e
conhecidos haviam já partido, que os lugares que ele conhecera ou no qual
vivera já não deviam existir da maneira que conhecera, que muitos
comportamentos e relações familiares modificaram-se de modo significativo (e,
no caso da minha família, para extremos que podem ser comparados com conflitos bélicos
conhecidos pela humanidade, até então). Nunca ousei verbalizar meus pensamentos
com medo da reação dele, que já se ensimesmara nos últimos anos. No entanto, continuo
me perguntando sem respostas concretas de sua parte. Apenas considero a mim
como parâmetro a essas mudanças que vão nos assolando. A cada ano, a cada
década, vamos nos despedindo de algo (metaforicamente ou não). Sejam de fases
da vida, seja de um animal de estimação, seja de uma pessoa especial, sejam de
lugares que fizeram parte de nossa infância, sejam de crenças sobre as pessoas
ou coisas que nos cercam, sempre nos desfazemos da presença de algo ao qual nos
vinculamos e que nos complementava. Nem sempre as despedidas são fáceis, mas
deixam rastros de ensinamento e de amadurecimento em sua passagem por nossas
psiques e emoções.
Apesar da constante, a velhice costuma trazer uma despedida
ainda mais dolorosa: a de nós mesmos. Da nossa existência. O constituir-se no
mundo é uma tarefa cheia de altos e baixos e, ainda assim, nos fortalece na possibilidade
de um amanhã, na esperança de podermos construir uma nova história pela
oportunidade que o novo dia traz. E mesmo que não sejamos eternos, nossa
essência se eterniza nas lembranças daqueles que convivem conosco, em nossas palavras
e condutas ao longo do caminho. Portanto, embora não possamos reaver o contato
com aquilo ou quem se foi, ainda podemos ter a esperança de construir uma
essência perene que traga orgulho e sorrisos nostálgicos para aqueles que ficam
com uma parte de nós.
Ø “Aliás, acho que a psique humana se constituiu para nos incapacitar de enxergar a verdade”. p. 208.
O pior tolo é aquele que acredita piamente no que ouve sem
se munir de informações que corrobore a dita “verdade”.
Somos criaturas crentes por natureza. Contudo, como somos seguidos pelo
contraditório existencial, também somos desconfiados. Só pela junção desses
dois fatos podemos deduzir que nossa espécie é eximia em ir atras das
informações. Embora até o seja em muitas circunstâncias, sinto que ultimamente
tem faltado desse espírito aventureiro por fatos nas veias de muitos que ouvem
e se calam, aceitando qualquer coisa como verdade absoluta. Hoje e cada vez
mais me deparo com a dura realidade: nunca há um lado da mesma moeda nem nunca
há apenas uma versão dos fatos.
Um dia disse aos meus alunos que a globalização nos permite montar
um gigantesco quebra-cabeças de informações que vamos colhendo para formar o
todo e, assim, compreender algo com maior precisão. Nem todos compreenderam
minha analogia, mas é bem isso com o que lidamos: um monte de fontes que nos
ajudam a chegar à tão ansiada verdade dos fatos. Entretanto, cabe a nós ir em
busca disso e deixamos de lado uma certa preguiça que nos domina. A verdade dá
trabalho. Por outro lado, a mentira se torna mais convidativa porque é
encontrada em todos os lugares, sem o menor esforço.
Ø “Sabe, às vezes tenho a impressão de que vivemos num mundo que nós mesmos projetamos. Determinamos o que é bom e o que é ruim, desenhamos mapas de significados... E depois, durante a vida inteira, lutamos contra aquilo que concebemos”. p. 207.
Somos tolos por acreditarmos ter controle sobre aquilo que
nos cerca. A natureza é um desses elementos incontroláveis que nós, seres
humanos, temos a arrogância de achar sermos capazes de dominar. E cada vez mais
nos deparamos com eventos que nos demonstram o contrário. A catástrofe, a meu
ver, se dá quando o homem, ao tentar evitar a força monumental da natureza ou
de submetê-la a sua vontade, ignora a própria fragilidade diante de
exorbitância de tamanha façanha infrutífera. Somos parte de uma força sem controle,
somos direcionados por circunstâncias que, muitas vezes, são resultado da
própria ganância e desrespeito com os quais nos munimos por nos considerarmos
seres racionais.
Na nossa racionalidade, agimos de modo irracional e
irresponsável. Culpamos o universo, porém somos nós os causadores das
moléstias, da degradação do meio ambiente, da extinção de espécies, das guerras,
dos eventos climáticos de magnitudes desproporcionais... Criamos um sistema de
culpabilização de terceiros e nunca arranjamos soluções para problemas que nós
mesmos começamos, aos quais demos continuidade e que continuamos a alimentar
por motivos torpes e mesquinhos. Enquanto não assumirmos a culpa pela derrocada
ambiental e social, a degradação só tenderá a ampliar-se e a consumir a vida na
Terra.
Ø “Não consegui me conformar que os policiais tivessem revistado minha casa e passei a sentir sua presença em toda parte...”. p. 203.
Quando falamos, por exemplo, sobre as ditaduras as reações são
variadas. Chegamos ao ponto de negarem sua existência. No entanto, só quem vive
com a ausência, quem tem sua liberdade cerceada, que tem seus direitos
ameaçados, que vê sua família vigiada e refém do medo é que sabe o que foi uma
ditadura. Só quem, de fato, leu os jornais, se informou podia relatar as
atrocidades testemunhadas em alguns governos ditatoriais com mais afinco.
Atualmente, há uma tendência a atenuarem todos esses
relatos, as histórias e a dor de quem perdeu parentes, amigos e a própria
dignidade com as torturas e exílios forçados. Pior ainda é ler ou ouvir alguém
chamar os que foram torturados de baderneiros, terroristas... Com tanta
convicção que dá um arrepio pelo tenebroso caminho pela ignorância infundada. É
uma inversão da história que me assusta. Assusta, principalmente, por parecer
um hábito que está se arraigando na nossa sociedade. Onde foi parar a curiosidade,
a reflexão e a contínua busca pela justiça? Jogamos pulpitos abaixo ou a
enterramos em palanques eleitorais?
Ø “É possível aceitar coisas banais que provocam apenas um desconforto, mas não uma crueldade sem sentido e onipresente”. p. 238.
Unindo-se ao ponto anterior, consideremos ainda a história
como um norte para levarmos como um mote para a análise da obra. Quando nos
deparamos com as nações, nessa constituição globalizada e globalizante
circundando o mundo, também somos expostos a noção de progresso. Erroneamente
vemos este termo empregado como aniquilação do passado, abandono das raízes que
nos constituem. Avancem mesmo sob os corpos mutilados de nossos “inimigos”. Eis
o tal progresso que vemos se instalando nas concepções de muitos líderes e em
seus discursos de hegemonia.
A partir do momento em que a dor do outro nos passa
desapercebida, em que consideramos uma morte mais triste do que outra, quando
selecionamos mentalmente quem está certo ou errado em conflitos com muitas
perdas humanas, temos de nos questionar se estamos passando um pano em cima da
crueldade por princípios ideológicos que vão nos desumanizando. Temos de
começar a refletir sobre nossas próprias concepções de realidade, humanidade,
solidariedade e empatia. Não apenas com terceiros, mas em nossas próprias famílias.
Quantas não vemos se desintegrando pela ganância, pela inveja, pela mágoa
infundada? Passamos por cima de quem tem nosso sangue com uma facilidade
monstruosa! Assim como puxamos o tapete e levantamos calúnia em prol de “se dar
bem” no ambiente de trabalho. Nos compadecemos do sofrimento de uns, enquanto
causamos a outros. Estendemos a mão a uns, enquanto chutamos quem mais sofre ao
nosso lado. Se somos seletivos em momentos assim, que tipo de pessoa, de fato,
somos? Que tipo de mundo estamos deixando de herança para as futuras gerações?
Por esses e outros pontos importantes, recomendo a leitura
dessa obra polonesa. Que ela os faça refletir sobre essas e outras questões que
nos ajudam a universalizar a importância de ser e sentir na nossa humanidade,
imperfeita, porém real e em constante evolução (por favor!).
XOXO
REFERÊNCIAS:
https://en.wikipedia.org/wiki/Olga_Tokarczuk
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