Maus - Art Spiegelman (2009)
By Cathy Scarlet
Autor: Art Spiegelman
Falar sobre circunstâncias envolvendo desastres, guerras ou dramas históricos nunca é fácil. Sempre dá a impressão de incompletude ou superficialidade. No entanto, quando alguém é bem-sucedido na empreitada, acaba por nos mostrar nuances antes nunca imaginadas de um momento histórico não apenas tenso, mas muito complexo como foi a Segunda Guerra Mundial. E, a obra foco de nossa crítica alcançou esse objetivo e, mais surpreendente ainda, num formato que jamais poderia imaginar que daria certo: história em quadrinhos!
Antes de falar sobre a obra, vamos conhecer um pouco de seu autor: Art Spiegelman. Nascido na Suécia, em 1948, vindo a morar nos Estados Unidos, posteriormente, imigrando com seus pais em 1951. Filho de pais sobreviventes da Segunda Guerra, retratou em MAUS os relatos de seu pai, acrescentando cenas da relação entre ambos e uma parte em que nos mostra como o suicídio da mãe o afetou e como as pessoas ao redor não o ajudaram naquele momento. Trabalhou para o The New Yorker, porém demitiu-se, como protesto. Atualmente, atua ao lado da esposa, Françoise Mouly.
Sua obra MAUS foi uma série em quadrinhos lançada de 1980 a 1991, reunida em volume único em edição brasileira de 2009, retrata os relatos feitos por Vladek (personagem principal da narrativa) a Spiegelman, seu filho e também outro personagem da história. A história é dividida em três parte, a meu ver (oficialmente, duas). A primeira é um prólogo, antes da parte I (todos os acontecimentos antes da família ser encontrada pelos alemães), com seis capítulos e, da parte II (de Auschwitz até a libertação com a derrota da Alemanha), com cinco capítulos. Os judeus são representados como ratos (MAUS de MOUSE, rato em inglês), os alemães como gatos, os poloneses como porcos e os americanos como cães. Tal representação acrescenta aspectos para análise e torna o enredo ainda mais rico de mensagens.
Na primeira parte, nos são apresentados os personagens da trama, a começar por Vladek (pai e protagonista), homem trabalhador que, por conta da guerra, tornou-se sovina, sistemático e apegado à família, seu filho Artie, que não superou a perda da mãe nem consegue compreender seu pai, sua segunda esposa Mala, a quem Vladek vive acusando de estar atrás de seu dinheiro, Françoise (esposa de seu filho), uma francesa convertida ao judaísmo para agradar ao sogro (e a quem Art não consegue decidir por representar como um sapo ou um rato, escolhendo este por ser lembrado da conversão ao judaísmo), Anja (a primeira esposa e mãe de Art), que suicidou-se em 1968, após a morte do último membro original de sua família, seu irmão, tendo perdido todos os demais durante a guerra, inclusive ao filho primogênito Richieu, bem como outros personagens secundários. A história começa com Vladek abandonando uma namorada (Lúcia) para casar-se com Anja, filha de família milionária, em 1937. Pouco tempo depois, com Hitler no poder, as coisas passam a mudar na Polônia. Nos vemos diante de um caos, onde quem tivesse dinheiro ainda conseguia arrumar meios de não ser aprisionado ou sucumbir ao crescente poder dos alemães. Convocado, Vladek se une ao exército polonês, porém acaba prisioneiro dos alemães. Liberto, vai para a casa dos pais, pouco antes de sua mãe morrer de câncer. Logo retorna para sua esposa. Vemos a constante violência e perseguição aos judeus, principalmente. Eram, inclusive, privados de terem negócios próprios (muitos perderam suas empresas, fábricas, pois era lei que nenhum judeu pudesse ter comércio) e de comprarem livremente (ganhavam cupons de alimentação a cada semana, com restrição de quantidade de alimentos). A pobreza e miséria, portanto, começou a ser grande. No entanto, as condições e perseguições só pioravam, até que tiveram de fugir, pois os judeus começaram a ser levados para campos de concentração, dos quais não retornavam. Os poucos judeus restantes nas comunidades tinham de se esconder ou serem escondidos (o que conseguiam oferecendo dinheiro ou bens em troca) e, pior, não podiam confiar em ninguém nem em outros judeus, pois podiam ser delatados por seus pares, talvez com a promessa de serem poupados (que não se cumpria). Vladek perdeu pai, irmãs e sobrinhos. Anja perdeu os pais e demais familiares. Provavelmente, todos mortos nas câmaras de gás. Com exceção de seu filho e sobrinhos, mortos juntos de sua cunhada por veneno, para não serem levados pelos alemães.
Na segunda parte, nos vemos em um cenário devastador: a vida no campo de concentração de Auschwitz. Mais miséria, mais fome, violência física e psicológica, mortes mas, acima de tudo, sobrevivência pela inteligência, pelo suborno e pela servilitude. Vladek, separado da esposa e do restante da família, se vê astutamente sobrevivendo. Quando, finalmente, a reencontra, fica aliviado por saber que está viva e vice-versa. Naquele momento de prisão nos campos e de trabalhos extenuantes, quem adoecesse, era quase certo ser morto. E seu relato no coloca diante de atos bárbaros, cruéis, inclusive, de luta pela sobrevivência, com pares roubando uns aos outros, até mesmo antes de estarem mortos, para poderem se manter naquela miséria e sob aquela ameaça de terror constante. No diálogo abaixo, entre pai e filho, compreendemos o motivo na não reação diante dos maus-tratos sofridos:
"Não entendo... Por que eles não tentavam resistir?"
"Não era tão fácil. Todos tinha tanta fome... E muito medo, muito cansaço. Nem vendo, acreditavam naquilo. ... E os judeus sempre vivia com esperança de que os russos chega antes que a bala do alemão entra no cabeça deles, e... (...) Alguns pessoas lutou... mas se mata um alemão, eles depressa mata cem judeus! E aí todo mundo morre".
É um livro de conteúdo sensível, mas intenso, que mexe com o leitor do começo ao fim. Desde os momentos dramáticos, tristes e aterradores da guerra até as consequências em quem sobrevive e para seus familiares, que ficam presos numa esfera de tensão, lidando com psicológicos atormentados pelas experiências subumanas e tenebrosas, bem como, concomitantemente, lidam com seus próprios tormentos e sentimentos ambíguos. Também ficamos chocados com os relatos de Vladek, sempre tão reais, como se ele vivenciasse, ainda, cada um daqueles momentos do passado. No fundo, imagino quão perturbador seja conviver com aquelas imagens na mente, com aquelas lembranças dolorosas na memória e, ainda, ter uma vida toda pela frente para reconstruir e continuar a sobreviver aos efeitos. Dor, violência, perseguição, morte, preconceito, discriminação, tortura, perdas... Histórias preenchidas com deduções, hipóteses... Perguntas sem resposta... Relatos destruídos na tentativa de apagar o sofrimento que ficou... No fim, as vítimas sobrevivente de guerras e suas famílias levam consigo uma tortura trazida pelas recorrentes lembranças.
Recomendo a leitura por inúmeras razões. Dentre as quais pela tradução, que procurou captar as diferenças linguísticas, pela abordagem de Spiegelman que nos traz o relato do pai e a inserção de sua figura na história numa espécie de metalinguagem criativa, que nos acrescenta sua própria postura diante do pai, já velho e com suas manias que não consegue compreender completamente, bem como suas impressões pessoais, frutos de, imagina-se, sua relação com seus pais, sobreviventes de um momento que tirou-lhes tudo, destruiu suas famílias e os deixou para reconstruírem suas identidades, seus psicológicos abalados e sua vida. É um livro de certas sutilezas com aquilo que não pôde ser comprovado ou confirmado, bem como a suavização do relato paterno, que entendeu determinadas posturas alheias como forma de sobrevivência ou piedade. Porém, as imagens são extremamente explícitas, bem como as impressões que nos causam. Não recomendo para crianças, pois é muito forte, mas é uma obra-prima necessária: nos faz compreender como os seres humanos, munidos de poder extremo, colocam suas visões de mundo como únicas a ponto de quererem eliminar o outro, diferente e incompreendido (ou incompreensível), nos faz perceber nossa pequenez, nossa fragilidade e, ao mesmo tempo, nossa força diante das adversidades da vida. Espero que, quem ler, reflita como discursos de ódio só trazem dor e sofrimento aqueles que são vítimas deles, e que não permitamos que tais discursos ressoem na sociedade. As consequências são sempre devastadoras para ambos os lados: para quem tem de conviver com sua consciência e para quem tem de conviver com o vazio e os traumas advindos de brutalidades, crueldades e atitudes irracionais.
XOXO
Muito bom, adorei! A proposta em quadrinhos é inovadora e instigante, diferente do que estamos acostumados a ler.
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