O velho do Restelo - Cathy Scarlet


By Cathy Scarlet





Ser idoso, em alguns países, não é fácil. Significa estar sozinho, vendo os amigos, familiares e conhecidos partindo. É ser desprezado e colocado de lado, como se fosse um objeto quebrado. É perder a importância ante os bens possuídos, aos olhos de terceiros, sedentos de colocar as mãos no trabalho de uma vida inteira. É não ter direitos respeitados. É perder o lado humano aos olhos de uma humanidade cega, ingrata, desumana e cruel. A seguir, um dos contos que escrevi baseado no Velho do Restelo, presente na obra de Camões. Nele, o personagem principal acaba por refletir a cerca das próprias relações familiares ao encontrar-se com a gentil filha do dono da loja de doces e com uma menina de rua, ainda capaz de um afeto pouco conhecido pelo senhor. Espero que gostem e compartilhem!






O VELHO DO RESTELO


Cathy Scarlet





Um senhor caminhava plácida e imponentemente pela calçada naquela manhã de março. Trajava uma roupa social bege e um chapéu panamá também bege com uma faixa marrom circundando-o. Na mão direita, segurava uma bengala de mogno envernizado. O bigode grisalho estava bem aparado e, sobre o nariz, óculos de armação de tartaruga. Antigo e de qualidade, como costumava salientar aos que zombavam de seus trajes e trejeitos pomposos ou excessivamente formais. Jovens... O que eles sabiam da vida?


A pedido dos netos, resolveu passar na nova loja de doces. De imediato, o cheiro o deixou atarantado. Havia anos que não se sentia tão emocionado e imerso em recordações. Aquele cheiro almiscarado penetrou-lhe as narinas fatigadas pela monotonia dos hábitos, levando-o aos recônditos de sua memória, já tão esquecida.


___Bom dia! – Cumprimentou-o uma linda jovem de rosto corado e um sorriso afável. – O senhor aceita experimentar um de nossos bolos? – Ofereceu com simplicidade e candura inegáveis, logo de imediato, pegando-o desprevenido.


___Claro. – Ele aquiesceu, também gentil, tirando o chapéu diante da moça, como pedia os bons modos aprendidos desde a tenra idade, sorrindo sem jeito pela abordagem tão natural. Os cabelos brancos estavam ligeiramente bagunçados, mas ele não fez caso disso nem a jovem pareceu dar-se conta.


___A propósito, meu nome é Estela. Sou filha do Medeiros, dono da loja. – Ela comentou com simplicidade. Usava uma touca vermelha florida, mas conseguia-se ver o tom castanho de seus cabelos, da qual alguns fios lhe escapam. Seus olhos, verdes como as asas de um papagaio ao céu, possuíam um brilho encantador e juvenil. As mãos eram delicadas, contudo seguravam a espátula de alumínio, retirada de um dos bolsos do avental, com firmeza, na mão direita e, na outra mão, um pratinho vermelho de plástico com um garfo, também de plástico. Cortou uma fatia do bolo a sua frente e, colocando-a no pratinho, estendeu-o ao senhor que a observava em silêncio, de água na boca por causa daquele bolo, cujo cheiro lhe aguçava os sentidos. – Aqui. Espero que aprove...


___Meu nome é Luís.


Estela sorriu e meneou a cabeça, como se estivesse registrando o nome na memória. Notava-o ligeiramente desconcertado diante dela. Acontece que o velho Luís não estava mais habituado a ser tratado com tamanha cortesia e gentileza.


Ao primeiro pedaço, o velho Luís reviveu, em questão de instantes, uma das cenas mais bonitas de sua infância: sua mãe, na cozinha, preparando um bolo para ele e os cinco irmãos. Os cabelos loiros e compridos eram tudo que via, enquanto dona Márcia mexia a massa do bolo com o pote de plástico nas mãos. Os movimentos firmes e constantes eram uma marca deixada por ela, que se voltara para o filho, que a observava da mesa, e sorrira.


___Vá brincar, Luís. – Ela lhe pedira, paciente. – Vai demorar para o bolo ficar pronto.


E Luís se levantara, ansioso e sentindo-se feliz pelo simples fato de tê-la ali, bem diante de si, zelando pelo filho caçula. E, antes de sair pela porta da cozinha:


___Eu te amo, mamãe. – Ele dissera, corando, não muito acostumado a demonstrar seu afeto abertamente.


Os olhos da mãe nele pousaram, suaves e carinhosos, como uma brisa de primavera.


___Eu também amo você, pequeno.


Aquele dia fora tão especial... Fora único por ter se sentido tão próximo a ela. Eram tempos difíceis, entretanto tudo parecia tão mais verdadeiro... Hoje, não conseguia se lembrar de um gesto de carinho dos próprios filhos e netos para consigo. As relações estavam vazias, triviais e efêmeras. Os netos o viam como um velho amalucado; os filhos, como a um velho desnecessário. Principalmente após a morte da matriarca, esposa de Luís, uma senhora sempre tão carinhosa e dedicada à família. Partira cedo demais, deixando-os vazios e distantes uns dos outros. E, nos poucos momentos de camaradagem, Luís se transformava no velho que comprava e dava presentes para todos. Cessados esses breves instantes, era apenas um fantasma a quem ninguém via, mas de quem todos falavam de modo sardônico.


___Desculpe! – Murmurou a jovem, desconcertada, tirando-o dos devaneios tristes. – Nem ofereci uma cadeira para o senhor se sentar!


Seus olhos encheram-se de lágrimas ao sentir-se tão bem na companhia de uma mera desconhecida, que sorria como se aquele velho antiquado fosse alguém importante.


___Você é muito gentil. – Ele murmurou, engolindo as lágrimas, dando mais uma garfada no bolo para disfarçar. – Não se preocupe, não vou me demorar. – E comeu o último pedaço do bolo. – Estava delicioso. – Jogou o prato na lixeira perto da porta.


___Fico feliz que tenha gostado. Significa muito para mim.


___Foi você quem fez?


A moça fez um gesto afirmativo com a cabeça, radiante. Era impressionante ver aquela aura de satisfação por ver seu trabalho reconhecido. Luís sorriu para a jovem e pegou uma pequena lista guardada em seu bolso. Estendeu-a para ela, prontamente. Sem pronunciar palavra alguma, apenas lendo o papel em suas mãos, Estela afastou-se e logo retornou com uma sacola com os itens rabiscados em letra de mão. Após pagar, Luís foi surpreendido com um pacote preparado especialmente para si.


___É um presente por vir à nossa inauguração. – Explicou, vendo-o com os olhos espantados. - Espero vê-lo em breve, Seu Luís.


Ele despediu-se com um gesto de seu chapéu.


No meio do caminho, encontrou uma garotinha toda encardida, que costumava andar pelo bairro, para cima e para baixo, sem eira nem beira. A pobre criança ergueu os olhinhos para o aquele senhor de aparência engraçada e sorriu, o rosto sujo de fumaça.


___Bom dia! O senhor tem alguma coisa para eu comer? Tenho fome... – Ela pediu. – Mesmo se não tiver, leva essa flor ‘pro senhor. – E estendeu uma margarida para Luís, que a apanhou com as mãos trêmulas de emoção.


___É triste ver como o mundo trata mal um ser inocente... – Ele murmurou, tocado. - Enquanto uns têm tudo o que querem sem nem se esforçar; outros têm que correr atrás para ter o mínimo, não é mesmo? Eu, por exemplo, tenho uma boa condição, no entanto... Não consigo ter o afeto dos meus. Meu destino é mil vezes pior, pois estou sozinho mesmo cercado de pessoas. Esse cuidado é repleto de vazio.


A menina o olhava sem entender, Luís percebeu, vendo que seu discurso não atendia à plateia defronte a si. Ergueu a sacola que trazia consigo, sem titubear. Dela tirou os “presentes” para os netos que estavam dentro de um saco de papel com o nome da loja e deu-os para a menina, cujos olhos se arregalaram pela surpresa ao reconhecer de onde vinham aquelas “preciosidades”.


___Não é muito, mas espero que goste.


___Muito obrigada! – Ela cantarolou, maravilhada, após fuçar o conteúdo do saco a sua frente. – Que Deus te abençoe muito! – E saiu saltitando pela calçada, sendo seguida pelo olhar do velho e um sorriso sincero de agradecimento.


Minutos depois, Luís chegou em casa, pendurou o chapéu atrás da porta e colocou a bengala próxima. Sentia-se bem como jamais pensaria ficar. O dia fora especial e cheio de significados valiosos para sua existência.


Os netos vieram ao seu encontro e esperaram que o avô esvaziasse a sacola sobre a mesa da cozinha. Não o cumprimentaram, não fizeram festa a sua chegada, nem um beijo ou abraço lhe foram dirigidos. Lançou um olhar rápido aos três, imparcial. Luiza, a caçula dos três netos, usava shorts jeans e um cropped branco e seus cabelos loiros estavam presos num coque bagunçado. Estava descalça e de meias brancas. Em seus oito anos não conquistara a simpatia dos pais, Luís Júnior e Monique, que a deixavam todos os dias aos cuidados do avô e preferiam viajar a ficar com a filha, rejeitada, porém cheia de vontades e nenhuma gentileza ou gratidão. Bernardo, seu neto mais velho de dezesseis, filho de sua única filha, Ivone, usava o uniforme do colégio particular e tênis de marca. Apesar da idade, era por demais infantil e oco. E, por fim, olhou para o de dez anos, Miguel, filho rebelde, mas excessivamente mimado de Carlos e Ana. Estudava no mesmo colégio que Bernardo, porém seu comportamento não era dos melhores, mesmo com uma educação de ponta.


Os três aguardavam o retorno do avô com os doces que haviam pedido.


Ficaram decepcionados ao ver que o velho nada lhes trouxera. Na verdade, a única coisa que trouxera consigo fora a pequena cortesia da moça da loja de doces: uma fatia farta do bolo, cujo sabor lhe trouxera lembranças escondidas nos recantos de sua memória sofrida e desgastada pelo tempo. Os netos nem deram bola ao doce. Não era aquilo que queriam nem o que pediram.


Sob lamúrias, caras feias e algumas imprecações nada boas aos ouvidos, os três foram saindo da cozinha, insatisfeitos e aborrecidos por terem seus pedidos esquecidos. Ai se soubessem quem estava saboreando com gosto os doces deles...


Luís sorriu, um lampejo de satisfação no olhar cansado. Após organizar a bagunça deixada na cozinha pelos netos, sentou-se à mesa e comeu o pedaço de bolo com uma fome especial, pensando no sentido da vida: a juventude estava condenada a ignorar o passado. Levantou-se, jogou a embalagem no lixo, lavou a colher que pegara e saiu para o quarto.


E, sobre a mesa da cozinha, ficou apenas um copo com água e a margarida que nele fora colocada com todo cuidado, um presente especial de mais uma vítima de uma sociedade injusta e omissa.









XOXO

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