Contos Ordinários de uma Sociedade Resignada - Ersin Karabulut (2021)

By Cathy Scarlet



Livro: Contos Ordinários de uma Sociedade Resignada (Contes Ordinaires d'une société résignée)
Autor: Ersin Karabulut
País: França
Ano de Lançamento: 2018
Gênero: Graphic novel
Editora: Comix Zone

Nota: 10


Vivemos em uma época na qual diversas temáticas vêm à tona, nos desafiando a encarar o mundo com outra perspectiva que, para alguns, é intransigente e tira a liberdade de expressão. Piadas que, décadas atrás, levavam plateias ao delírio, hoje constrangem e nos fazem repensar certos valores, costumes e posicionamentos diante da realidade ou de aspectos dela, antes relegados ao descaso ou ao obscurantismo da falta de discussões a cerca dos matizes das vozes silenciadas ao longo da história daquilo que chamamos de civilização.

 

E eis que me deparo com essa obra gráfica de Ersin Karabulut, autor nascido em 1981 em Istambul, Turquia. Artista ganhador de prêmios, colabora com uma editora francesa, pela qual lança a graphic novel que temos aqui e tanto atrai nossa curiosidade pela força de sua construção.

 

Ersin Karabulut

Em  Contos Ordinários de uma Sociedade Resignada temos quinze contos em que são retratadas histórias que, à primeira vista, parecem absurdas e estranhamente perturbadoras (digo com veemência, pois o simples folhear deixou minha mãe absurdamente incomodada e recomendando a leitura da Bíblia para suavizar meu espírito diante do grotesco testemunhado nas páginas), no entanto, uma análise mais aprofundada e, não menos incomodada, claro, levou-me a uma percepção interpretativa muito relacionada com o título: do começo ao fim, o turco nos traz uma crítica contumaz da sociedade da qual fazemos parte, numa escala global, atingindo o âmago de nossos seres com as temáticas e com as imagens relacionadas a elas, criadas para nos causar um impacto quase doloroso pelo grotesco trazido pelo exagero (será mesmo exagero? Tenho lá minhas dúvidas...). Sem sombra de dúvidas, algumas coisas ficam extremamente subjetivas e figuradas, mas não há como negar críticas severas:

 

1.      À hipocrisia da “juventude”, que desmerece a figura dos mais velhos, considerando-os inadequados e dignos de poderem deixar esse mundo sem maiores implicações, como inúteis e pesos a serem levados pelas gerações mais novas;

2.      À política que, desde os primórdios, consegue ludibriar a massa da população para atingir seus propósitos, de modo a incentivar a ignorância das pessoas diante da realidade na qual vivem, por vezes, colocando o povo contra o próprio povo;

3.      À resignação das pessoas diante das arbitrariedades da vida, tornando-as insensíveis às dores e sofrimentos alheios, focadas em satisfazer suas próprias necessidades, mesmo significando abdicar de si mesmas e da ética nas relações;

4.      À interferência na vida das pessoas, submetendo-as a condições de injustiça, perigos, violências, depreciação social, estigmas, etc, tratando-os como acontecimentos banais e corriqueiros;

5.      Às relações superficiais e/ou banalizadas, em que a traição é o único meio para vencer o lidar com o cotidiano, mesmo que às custas da confiança;

6.      À questão da identidade (e isso é extremamente interessante, se nos aprofundarmos na construção feita por Karabulut, uma vez que nos leva a constatar:

a.       Como queremos um padrão que, de tal modo, nos faz ficar reféns de não sermos nós mesmos, nos tornando mascarados para viver nos círculos sociais e, ao fazer isso, não mais conseguimos reconhecer a nós mesmos;

b.      Que estamos nos submetendo o tempo todo para sermos reconhecidos e valorizados para, no fim, sermos esquecidos e “jogados no lixo” quando passar a “novidade”;

c.      Que estamos vivendo na iminência do que outros vão pensar ou esperar de nós, nos destruindo pouco a pouco para nos adequarmos ao “normal” de algumas relações abusivas, deixando de lado nosso amor-próprio para o movimento enganoso de “amar ao outro” e “doar-se ao outro”;

7.      Às relações parentais doentias em que não há a quebra do cordão umbilical, tornando quaisquer relações dos filhos uma ameaça ao poderio matriarcal ou patriarcal;

8.      Ao ser humano e seu “valor de mercado”, objetificando as pessoas como se fossem, de fato, mercadorias à venda, fazendo-nos perder nossas compreensões éticas e morais a fim de satisfazer terceiros às custas de nossas individualidades.

 

E essas foram apenas algumas das temáticas que notei nessa leitura. Acredito haver muitas outras observações pertinentes na criação dessas narrativas. O fato é essa riqueza dura com que fomos presenteados e que nos faz compreender algumas questões complexas diante de nós. Somos facilmente seduzidos a não nos importarmos com tópicos como os acima apresentados, pois são complexos e imbricados em algumas circunstâncias muito frequentes no nosso dia a dia. Dificilmente nos deparamos com algumas delas e não ficamos nos sentindo culpados por não nos posicionarmos corretamente ou por sermos indiferente às mazelas sofridas, às vezes, por quem está bem ao nosso lado. E qual nossa atitude/ resposta?

 

Ah, não é comigo!

Estou muito ocupado.

Não preciso me preocupar com isso, pois minha vida é ótima.

Que ela se ferre/ se lasque/ se foda... O importante é eu ser feliz.

Aquele velho merece morrer mesmo! É um estorvo.

Nossa, que fulano estranho... Quem ia querer um cara desses?

Você casou com meu filho e mora nesta casa, portanto vai fazer o que eu quiser!

O importante é ele estar comigo.

Ele rouba, mas faz.

Ele come frango com farofa, então deve ser um ótimo candidato! É do povão!

Se ele fosse assim, talvez eu gostasse dele.

Ela estava parecendo uma puta com aquela roupa, logo mereceu.

 

Parecem frases aleatórias ou they rang the bell (soam familiares)? Aposto que já ouviram algumas delas em algum momento da vida... Quem sabe, até mesmo disseram. Ou seja, invariavelmente compactuamos com aquilo que destrói ao outro e, em contrapartida, a nós também. Toda ação tem sua reação, sua consequência. E, a consequência, claramente, é a não construção de uma sociedade justa, com equidade de direitos e deveres, empática e solidária. Ainda propagamos os mesmo preconceitos e preceitos antigados sem nem nos darmos conta. Embora sejamos falhos e imperfeitos, nossos movimentos sociais ainda estão atrasados e repetindo as mesmas fórmulas fracassadas de sempre, num ciclo infindável, perpetuando sofrimentos, angústias e degradação. Somos as ferramentas que sustentam atitudes e falas machistas, xenofóbicas, racistas... Um exemplo é vermos como há mulheres que não praticam aquilo que chamamos de sororidade e se tornam plateia de homens que maltratam outras mulheres. 

Nessa obra, que não recomendo para crianças pelas imagens fortes, conseguimos nos deparar com a estranheza perturbadora desses momentos em que falhamos como civilização. Recomendo a leitura com criticidade e um olhar apurado para o que está além das imagens e das palavras e, acima de tudo, recomendo para aqueles que precisam reconhecer um pouco das próprias falhas para que possamos (sim, me incluo nisso, sem dúvida) achar modos de fazer florescer um mundo no qual tais temas se tornem obsoletos, como tantos outros.

 

 

 

 

 

 


XOXO




REFERÊNCIA

https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/verso/quadrinho-turco-a-la-black-mirror-critica-o-governo-autoritario-de-erdogan-1.3108642

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