Contos Ordinários de uma Sociedade Resignada - Ersin Karabulut (2021)
By Cathy Scarlet
Autor: Ersin Karabulut
Vivemos em uma época na qual diversas temáticas vêm à tona,
nos desafiando a encarar o mundo com outra perspectiva que, para alguns, é intransigente
e tira a liberdade de expressão. Piadas que, décadas atrás, levavam plateias ao
delírio, hoje constrangem e nos fazem repensar certos valores, costumes e posicionamentos
diante da realidade ou de aspectos dela, antes relegados ao descaso ou ao obscurantismo
da falta de discussões a cerca dos matizes das vozes silenciadas ao longo da história
daquilo que chamamos de civilização.
E eis que me deparo com essa obra gráfica de Ersin
Karabulut, autor nascido em 1981 em Istambul, Turquia. Artista ganhador de
prêmios, colabora com uma editora francesa, pela qual lança a graphic novel
que temos aqui e tanto atrai nossa curiosidade pela força de sua construção.
Em Contos Ordinários
de uma Sociedade Resignada temos quinze contos em que são retratadas histórias
que, à primeira vista, parecem absurdas e estranhamente perturbadoras (digo com
veemência, pois o simples folhear deixou minha mãe absurdamente incomodada e recomendando
a leitura da Bíblia para suavizar meu espírito diante do grotesco testemunhado
nas páginas), no entanto, uma análise mais aprofundada e, não menos incomodada,
claro, levou-me a uma percepção interpretativa muito relacionada com o título:
do começo ao fim, o turco nos traz uma crítica contumaz da sociedade da qual fazemos
parte, numa escala global, atingindo o âmago de nossos seres com as temáticas e
com as imagens relacionadas a elas, criadas para nos causar um impacto quase doloroso
pelo grotesco trazido pelo exagero (será mesmo exagero? Tenho lá minhas
dúvidas...). Sem sombra de dúvidas, algumas coisas ficam extremamente subjetivas
e figuradas, mas não há como negar críticas severas:
1.
À hipocrisia da “juventude”, que desmerece a
figura dos mais velhos, considerando-os inadequados e dignos de poderem deixar
esse mundo sem maiores implicações, como inúteis e pesos a serem levados pelas gerações
mais novas;
2.
À política que, desde os primórdios, consegue ludibriar
a massa da população para atingir seus propósitos, de modo a incentivar a ignorância
das pessoas diante da realidade na qual vivem, por vezes, colocando o povo
contra o próprio povo;
3.
À resignação das pessoas diante das arbitrariedades
da vida, tornando-as insensíveis às dores e sofrimentos alheios, focadas em satisfazer
suas próprias necessidades, mesmo significando abdicar de si mesmas e da ética
nas relações;
4.
À interferência na vida das pessoas,
submetendo-as a condições de injustiça, perigos, violências, depreciação social,
estigmas, etc, tratando-os como acontecimentos banais e corriqueiros;
5.
Às relações superficiais e/ou banalizadas, em
que a traição é o único meio para vencer o lidar com o cotidiano, mesmo que às
custas da confiança;
6.
À questão da identidade (e isso é extremamente
interessante, se nos aprofundarmos na construção feita por Karabulut, uma vez
que nos leva a constatar:
a.
Como
queremos um padrão que, de tal modo, nos faz ficar reféns de não sermos nós
mesmos, nos tornando mascarados para viver nos círculos sociais e, ao fazer
isso, não mais conseguimos reconhecer a nós mesmos;
b.
Que estamos nos submetendo o tempo todo para sermos
reconhecidos e valorizados para, no fim, sermos esquecidos e “jogados no lixo”
quando passar a “novidade”;
c.
Que estamos vivendo na iminência do que outros vão
pensar ou esperar de nós, nos destruindo pouco a pouco para nos adequarmos ao “normal”
de algumas relações abusivas, deixando de lado nosso amor-próprio para o movimento
enganoso de “amar ao outro” e “doar-se ao outro”;
7.
Às relações parentais doentias em que não há a
quebra do cordão umbilical, tornando quaisquer relações dos filhos uma ameaça
ao poderio matriarcal ou patriarcal;
8.
Ao ser humano e seu “valor de mercado”, objetificando
as pessoas como se fossem, de fato, mercadorias à venda, fazendo-nos perder
nossas compreensões éticas e morais a fim de satisfazer terceiros às custas de
nossas individualidades.
E essas foram apenas algumas das temáticas que notei nessa leitura.
Acredito haver muitas outras observações pertinentes na criação dessas narrativas.
O fato é essa riqueza dura com que fomos presenteados e que nos faz compreender
algumas questões complexas diante de nós. Somos facilmente seduzidos a não nos
importarmos com tópicos como os acima apresentados, pois são complexos e imbricados
em algumas circunstâncias muito frequentes no nosso dia a dia. Dificilmente nos
deparamos com algumas delas e não ficamos nos sentindo culpados por não nos
posicionarmos corretamente ou por sermos indiferente às mazelas sofridas, às vezes,
por quem está bem ao nosso lado. E qual nossa atitude/ resposta?
Ah, não é comigo!
Estou muito ocupado.
Não preciso me preocupar com isso, pois minha vida é ótima.
Que ela se ferre/ se lasque/ se foda... O importante é eu ser feliz.
Aquele velho merece morrer mesmo! É um estorvo.
Nossa, que fulano estranho... Quem ia querer um cara desses?
Você casou com meu filho e mora nesta casa, portanto vai fazer o que eu quiser!
O importante é ele estar comigo.
Ele rouba, mas faz.
Ele come frango com farofa, então deve ser um ótimo candidato! É do povão!
Se ele fosse assim, talvez eu gostasse dele.
Ela estava parecendo uma puta com aquela roupa, logo mereceu.
Parecem frases aleatórias ou they rang the bell (soam familiares)? Aposto que já ouviram algumas delas em algum momento da vida... Quem sabe, até mesmo disseram. Ou seja, invariavelmente compactuamos com aquilo que destrói ao outro e, em
contrapartida, a nós também. Toda ação tem sua reação, sua consequência. E, a
consequência, claramente, é a não construção de uma sociedade justa, com
equidade de direitos e deveres, empática e solidária. Ainda propagamos os mesmo preconceitos e preceitos antigados sem nem nos darmos conta. Embora sejamos falhos e
imperfeitos, nossos movimentos sociais ainda estão atrasados e repetindo as
mesmas fórmulas fracassadas de sempre, num ciclo infindável, perpetuando sofrimentos,
angústias e degradação. Somos as ferramentas que sustentam atitudes e falas machistas, xenofóbicas, racistas... Um exemplo é vermos como há mulheres que não praticam aquilo que chamamos de sororidade e se tornam plateia de homens que maltratam outras mulheres.
Nessa obra, que não recomendo para crianças pelas imagens
fortes, conseguimos nos deparar com a estranheza perturbadora desses momentos
em que falhamos como civilização. Recomendo a leitura com criticidade e um
olhar apurado para o que está além das imagens e das palavras e, acima de tudo,
recomendo para aqueles que precisam reconhecer um pouco das próprias falhas para
que possamos (sim, me incluo nisso, sem dúvida) achar modos de fazer florescer
um mundo no qual tais temas se tornem obsoletos, como tantos outros.
XOXO
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